Trauteei aquela repetição e dei-me ao luxo de lhe juntar umas côres, das minhas. só o fiz porque ninguém me estava a ouvir. Toda a gente que conheço pensa que me conhece mas, na verdade, ignoram que eu pinto músicas. Sobretudo as que não estou a ouvir, pelos menos, que não estão, naquela altura, a ser ouvidas por mim. Os sons mântricos, internos, infernos, aqui dentro da minha cabeça, começam como começou o mundo dos outros. E à palavra, juntam-se os coros infernais, as tubas deformadas, as cordas estouradas. e a forma, no pensamento disforme, é esclarecida com a luz dos metais e com o cheiro das madeiras. ribombam os tambores com o metrónomo cardíaco e está lançado um novo mundo. que vai voltar à palavra, agora com outra côr, com outro feitio e com o tempo que, entretanto, já foi repetido. com outras côres, mas repetido. com outra frase, mas repetida. No fim, tudo é diferente. Quando, passado uns dias, umas horas, uns segundos, quando, depois de a teres precipitado para uma apoteose wagneriana, eis que, lá dentro (cá dentro) surge a inevitável repetição, disfarçadamente e de mansinho... Então, junto-lhe as outras côres, que já sabemos que irão ser as mesmas. Porque, no fundo, e por muito desconjuntada, alterada, violada, lambida, mastigada e reciclada, sei que será sempre a mesma música. Aquela a que junto côres quando ninguém me vê. a que finjo não saber que é a mesma.