Um cartão de visita nunca fica por muito tempo.
Era capaz de me habituar à sua peculiar insegurança de mulher cheia de força, daquelas forças interiores que são postas à prova das maneiras mais injustas possíveis. Era capaz de me habituar ao seu cheiro, sempre bom. Era capaz de me habituar à sua inteligência, perspicaz, à sua adulta meninice, às nossas contradições, asquerosamente fofas, sem as quais aprendi a viver e sem nunca perceber a falta que me faziam, até a conhecer. Mais do que as vidas passadas, descobri uma nova vida. e sou capaz de me habituar a ela.
Foi uma sequência de acontecimentos que ainda tentámos explicar mas, contrariamente ao que é a nossa natureza em sociedade, magneticamente, fomo-nos aproximando. baixámos as defesas.
e ainda bem que o fizémos.
ele está apaixonado de novo. como se nunca tivesse tido antes, apesar de saber reconhecer os sintomas e a estupidificação natural que sofrem as pessoas que padecem desse estado. o próprio termo "apaixonado" dava-lhe vómitos até determinada altura. mas, quando ele fala com ela, todos os maneirismos, tom de voz, aquele sorriso estúpido na cara, todos os dados indicam que, claramente, está (blhék) "apaixonado". e depois, tentar definir por uma série curta de palavras é uma tarefa ingrata, sobretudo para quem está numa situação em que a sua própria inteligência é questionada. é que nunca, em condições normais, se fala com outra pessoa como se ela fosse uma criança e nós seus companheiros de recreio, a não ser que sejamos, efectivamente, crianças no recreio. e, mesmo assim, terão de ser crianças como nós fomos, porque as crianças de hoje são tudo menos crianças, parecendo-se uns mini-adultos, mas mais burrinhos (ou só com menos experiência de vida). mas são cínicas, falsas e más. mini-adultos, portanto. mas, apaixonados, entramos numa estupidez natural, numa inocência tal que, facilmente, damos o corpo ao manifesto, caímos alegremente e nem sequer notamos. vamos por uma encosta abaixo e começam-nos a falhar os pés e a qualquer momento vamos cair, mas não conseguimos parar e a lama faz-nos escorregar e a velocidade aumenta e já não queremos parar e parece que estamos quase quase quase a cair e os nossos pés não tocam no chão e é essa vertigem que desafia as leis da gravidade e esse momento da corrida ladeira abaixo que parece que dura meses, horas, nanosegundos de adrenalina e essa vontade de chegar ao fim da descida, caindo ou não caindo, estatelando-se ao comprido ou não. Quando ele pensa nela, é essa a vertigem na barriga, a mesma respiração, presa entre o peito, como se estivesse a cair durante todo um dia.
Noutro tempo, noutro lugar tudo seria fácil, como se isso pudesse ser escolhido. Se calhar até com outras vidas, com outros trabalhos, amigos, cargos e carros. com outra vida, com outros tempos, noutros termos. O que pode ser escolhido, nesta altura, é (e só isso e nada mais) se,a seguir a dar este passo com o pé direito, dorido e inchado, posso podes, dar o passo esquerdo. Quando me apercebo, a mecânica do andar escolheu por mim ti, estando já esse calcanhar a empurrar o mundo para trás, criando o atrito suficiente para a tracção (atracção) funcionar. E ando. O que se pode escolher não é o sítio, o tempo ou o lugar. simplesmente, se posso, podes, podemos, ter o poder de sermos intérpretes no que está para acontecer. Que nenhum saberá o que será, ainda. Eu caminho, corro, coxeio, salto nessa direcção. Sem saber porquê mas sem o questionar.
A chuva miúdinha que caiu lá atrás parece um dilúvio de proporções bíblicas comparada com a confortável luz que ainda me encandeia no caminho que surgiu mesmo à minha frente.
O preço de ter ofertado demasiado tempo, mais que o necessário, mais do que o saudável foi esta vontade, surgida da necessidade de o utilizar egoísticamente. Tal como a minha dor, que é só minha e que ninguém compreende. E fodam-se quem vem com aquelas palavras comezinhas, de peninhas e compaixõezinhas, com os olhares vazios de sentimento, pregando o sermão repetido pela cultura popular, dizendo-me que já era a altura de a deixar ir, que já estava no seu tempo. O seu tempo era o MEU tempo! e se o tempo dela chegou, também o meu teria chegado. Deveria ter chegado e não chegou. Devia a alma, a mente, o centro coordenador de emoções, o id, o ego, o que lhe queiram chamar, devia ser programado a desligar essa formatação quando alguém morre. Se morreu, todas as minhas memórias dela e com ela deveriam morrer, também, com ela. Formatação de disco, apagar a pasta, reciclagem esvaziada. E todo um tempo vazio à frente, à espera de ser preenchido com outra pessoa. ou comigo, ou com ninguém. ou com colecções de rótulos e caricas, de saltos-livres e pesca artesanal, de passeios pelo jardim e jogos de sueca ou qualquer outra idiotice sugerida por esta gente de olhos vazios, que não sabem que a transporto comigo, até ao fim do meu tempo, sem nunca a passar para ninguém.
As personagens ganharam uma nova casa. A difícil fase das mudanças, de palavras e bagagens, para o livro da sua história (moinho de vento que não me cansarei de combater) terá que ser iniciada rapidamente. E, parte mais difícil desta transição oferecida ("caída do céu" é expressão tão fácil de usar para a definir mas tão cliché que, como as cartas de amor do outro, é tão ridícula que tem que ser utilizada), essa mudança será feita ordenadamente e com alma, com uma rigidez soviética e um romantismo francês, com trabalho e organização, raiva e tempo, tempo,tempo,tempo e atenção. Com vontade de usar a nova casa, irei juntá-las, as personagens, com palavras e bagagens e, tijolo sobre tijolo, página sobre página. irão encontrar um sentido. Afinal, este trabalho também liberta.
(mas eu sou tão desorganizado com a vida delas)